A participação popular nas decisões e regras coletivas é defendida por Nações Unidas (ONU) desde a sua criação em outubro de 1945, após a vitória do bloco Aliado na Segunda Guerra Mundial. Foram necessários 62 anos para que a ONU reconhecesse o dia 15 de setembro como o Dia Internacional da Democracia, em 2007, em referência à Declaração Universal da Democracia, assinada dez anos antes numa conferência interparlamentar na cidade do Cairo, no Egito.
Em 1997, quando o Brasil assinou o Declaração Universal da Democraciaa Constituição do país estava em processo de regulamentação, nove anos após a promulgação. A Ditadura Militar, encerrada em 1985, ainda foi um processo recente e de memória próxima. Faltavam 60 anos para o fim do estado de exceção na era Vargas, em 1937, e até a proclamação da República tinha pouco mais de um século.
Na 17ª edição do Dia Internacional da Democracia, comemorado neste domingo (15), especialistas ouvidos pelo Agência Brasil chamou a atenção para a necessidade de manter continuamente ativa a defesa da democracia diante dos riscos vividos nos últimos anos. O país atravessa agora um duro processo de radicalização e polarização política que teve o seu auge nas eleições de 2017 e esteve perto de ameaçar a continuidade do respeito pelas urnas, na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023.
“A democracia brasileira vem sofrendo ataques sistemáticos e a violação de sua constituição por setores que não estão comprometidos com o Estado Democrático de Direito. Isso ficou ainda mais evidente no último governo [de Jair Bolsonaro]e, sobretudo, com os atentados de 8 de janeiro de 2023. Se não fosse, justamente, o comprometimento e a solidez de algumas de nossas instituições, não estaríamos falando hoje da fragilidade da democracia brasileira, ou mesmo de como ela irá melhorá-lo”, destaca o diretor executivo da Instituto Vladimir HerzogRogério Sottili.
Segundo ele, a democracia brasileira ainda carece de mecanismos robustos de promoção de direitos e de justiça, que evitem a impunidade daqueles que atacaram o regime democrático no passado.
“Quando um país não articula seu passado de violência, agindo contra aqueles que atacam e atacam livre e abertamente o Estado Democrático de Direito, como o Brasil não fez no passado, o que temos é uma cultura de impunidade, que favorece ataques como os que vimos”, destaca.
“Precisamos compreender que o passado está sempre à nossa porta e até agirmos de forma eficaz, voltaremos a viver episódios de ataques à nossa democracia hoje e amanhã”, acrescenta.
Justiça
O Procurador Regional da República e presidente do Comissão Especial sobre Mortes e Desaparecimentos PolíticosEugenia Gonzaga, enfatiza que o Brasil não fez sua Justiça de Transição, após o período da ditadura militar (1964-1985), e que agora está pagando pelo erro.
“Em todo o mundo, onde se estudam situações em que houve violação da legalidade, em que houve transição de ditaduras para regimes democráticos, parece que era necessário promover a reparação das vítimas, a responsabilização dos perpetradores, de os agentes de segurança que contribuíram para esta situação”, afirma.
A falta de responsabilização abre caminho para a repetição de novas ações contra a democracia, segundo ela. “O dia 8 de janeiro de 2023 tem tudo a ver com esse processo de não revelação da verdade, de omissão, de negação do que aconteceu como golpe. Tem a ver com a impunidade destes autores, com a divulgação da falsa história que [o golpe de 1964] salvou o país do comunismo.”
“A defesa da democracia é infelizmente um processo muito delicado, muito difícil, por isso temos que ter instrumentos para combater estas arbitrariedades e estas tentativas de varrer para debaixo do tapete os ataques à democracia”, acrescenta.
A Comissão Especial de Mortes e Desaparecidos Políticos foi reinstalada em julho deste ano pelo presidente Lula, após ser fechada em 2022, durante o governo Bolsonaro.
Sessenta anos depois do golpe (confira especial), estudos apontam a existência de 144 pessoas desaparecidas durante a ditadura militar. Há também casos de pessoas cuja morte foi confirmada pelo Estado, mas cujo corpo desapareceu. Entre eles, o estudante de geologia da Universidade de Brasília, Honestino Guimarães, possivelmente morto em 1973 por agentes da ditadura.
Desinformação
Segundo Nilmário Miranda, jornalista e ex-deputado federal, preso político na década de 1970 e assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), a construção de memórias baseadas na verdade é uma das os principais pilares da democracia. Esse processo, porém, foi questionado devido às notícias falsas.
“Não existe democracia baseada em Fake News, apropriação e mudança da história. A democracia só está relacionada com a memória verdadeira e com a construção de memórias, por isso a sua manutenção e ações como a Comissão da Verdade vão além dos governos e estão relacionadas com as políticas de Estado”, argumenta.
“É importante manter viva a memória e continua válido e necessário recordar o lema da Comissão: para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça. Isto tem que fazer parte da vida do país, tem que fazer parte da educação, para evitar algo como o golpe que quase aconteceu no dia 8 de janeiro”, acrescenta.
Ele lembra que durante a ditadura militar, 750 parlamentares sofreram impeachment, mais de 30 mil pessoas denunciaram algum tipo de tortura e houve 434 mortes e desaparecimentos. “Isso tem que ser do conhecimento de todos. Se não, volte e repita. A história mostra que isso volta. A verdadeira democracia precisa disso.”
Avançar
Adriano Diogo, geólogo e político, preso político durante a Ditadura Militar e membro da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, considera que a democracia tem enfrentado um grande desafio na era da comunicação digital. Ele ressalta, porém, que o sistema democrático ainda é o mais avançado que existe.
“Estamos num momento difícil, em que o peso da comunicação digital dificulta o processo, mas não podemos deixar de lutar, gritar, competir e vencer eleições, que é a única forma de garantir a continuidade da Democracia”.
“Pode ter todos os seus problemas, mas é o mais avançado e revolucionário que temos neste momento, e aquele que garante a participação do povo, que é o centro da decisão. É com base na vontade popular que se constroem gerações”, acrescenta.
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