Enquanto cuida da pequena horta de onde tira alimentos para consumo próprio, Elisangela Jesus da Silva, 45 anos, guarda uma preocupação na cabeça: o medo de ser despejada. Janja, como é conhecida a agricultora urbana, mora há oito anos na Ocupação Aliança em Cristo, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), no bairro Jiquiá, zona oeste do Recife. Ela mora com o companheiro – eletricista de automóveis – e dois filhos, de 4 e 5 anos.
A dificuldade financeira é a razão pela qual Janja encontrou na ocupação a resposta a uma necessidade fundamental de qualquer pessoa, a habitação.
“Antes eu pagava aluguel, mas era muito difícil, porque tinha que pagar aluguel, energia, água, remédio, comida… Estávamos passando por muita dificuldade, muita dificuldade”, lembra ele em uma conversa com Agência Brasil.
Embora as contas da família sejam menos pressionadas quando vivem na ocupação, Janja elege a falta de regularização fundiária como o maior problema atual. “Moramos aqui, mas nada é legal”, diz ela, citando que foram os próprios ocupantes que construíram o sistema de encanamento de água.
“A maior dificuldade é a regularização, queremos estar regularizados e ter tranquilidade para, no futuro, não enfrentarmos nenhuma ameaça de despejo”, afirma o agricultor.
Ela relata já ter sofrido um episódio de expulsão. “Um suposto proprietário apareceu e disse que era dono da área e nos expulsou”.
A prefeitura do Recife informou ao Agência Brasil que a regularização fundiária seja realizada em áreas classificadas como Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), e que a ocupação da Aliança em Cristo seja fora dessas áreas.
“Além disso, está localizado em uma Área de Preservação Ambiental (APA), entre os rios Jiquiá e Tejipió, o que impossibilita a regularização urbana no local”, afirmou.
Questionada se existe algum plano de ação voltado para a situação dos moradores locais, a prefeitura não respondeu até a conclusão do relatório.
Eleições e direito à moradia
O direito à habitação é uma das questões em jogo no dia 6 de outubro, data da primeira volta das eleições autárquicas. Mais de 155,9 milhões de eleitores vão às urnas em 5.569 cidades para escolher prefeitos e vereadores.
O direito à moradia reivindicado por Janja é uma garantia para todos os brasileiros, conforme consta no artigo 6º do Constituição Federal. O artigo 23, por sua vez, determina que é competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios “promover programas de construção de moradias e de melhoria das condições de habitação e de saneamento básico”.
Déficit habitacional
Janja faz parte do grupo de brasileiros que vivenciam o déficit habitacional, estimado em 6,2 milhões de domicílios, segundo levantamento realizado em 2022 pela Fundação João Pinheiro (FPJ), instituição de pesquisa e ensino vinculada à Secretaria de Estado do Planejamento e Gestão de Minas Gerais.
A pesquisa, realizada em parceria com a Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades, considera situações de déficit habitacional como necessidade de reposição ou mesmo construção de moradia por precariedade estrutural, gastos excessivos com aluguel e famílias que precisam coabitar imóveis.
O estudo foi realizado com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), do governo federal.
A FPJ estimou ainda que 26,5 milhões de domicílios, cerca de 42% do total existente à época da pesquisa, apresentavam pelo menos algum tipo de inadequação, seja falta de infraestrutura urbana (energia elétrica, abastecimento de água, rede de esgoto e coleta de lixo) lixo); pertinentes à edificação (ausência de banheiro exclusivo, número de cômodos servindo como dormitórios e armazenamento de água, piso e cobertura inadequados) e inadequação do solo urbano.
Despejos
Além disso, a Campanha Despejo Zero, articulação nacional formada por mais de 175 organizações, entidades, movimentos sociais e coletivos, estima que existam 1,5 milhão de pessoas no país afetados por despejo ou remoção forçada.
A organização social Habitat Brasil é uma das instituições que ajudou no mapeamento de famílias que enfrentam despejos, como a de Janja, ou já despejadas. A organização atua no Brasil há 30 anos.
Uma das áreas de acção prioritárias é o acesso a uma habitação digna. Um programa de melhorias beneficiou mais de 2.600 residências e, por meio do programa governamental Minha Casa, Minha Vida Entidades (que concede financiamento subsidiado a famílias organizadas por meio de entidades privadas sem fins lucrativos), foram construídas quase 7.600 residências. As duas frentes beneficiaram 51 mil pessoas.
Entidades municipais
Neste cenário de poucos dias antes das eleições municipais, a diretora executiva da Habitat Brasil, Socorro Leite, reforça que o poder municipal tem um papel essencial na garantia do direito à moradia.
“É responsável por criar leis que regulamentem o uso e ocupação do solo na cidade. Além disso, é a nível municipal que são definidas áreas de interesse que podem ser predominantemente utilizadas para habitação social”, enumera o diretor executivo.
Segundo o activista, cabe às autoridades municipais priorizar áreas de interesse social para produzir novas habitações e garantir o cumprimento da função social do imóvel.
Ela também enfatiza o papel do articulador na obtenção de recursos. “É fundamental buscar novas fontes de recursos, não apenas contar com recursos próprios, muitas vezes limitados e em disputa com outras áreas igualmente importantes. Buscar financiamento e compensações dos governos estadual e federal é fundamental”, afirma.
Porém, Socorro Leite alerta que os municípios não podem se submeter a ficar “reféns” apenas dos programas habitacionais federais. “Vimos isso na gestão federal anterior, que não destinou recursos para habitação social, paralisando essa política em muitos municípios”, lembra.
A ativista destaca que a regularização fundiária é uma política que deve ser priorizada. “Não ter a propriedade fundiária regularizada significa estar, de certa forma, em risco de despejo”, ressalta.
A especialista em planejamento urbano Paula Menezes Salles de Miranda, professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), destaca o papel dos vereadores na questão habitacional.
“Os vereadores podem criar leis relacionadas ao fornecimento de moradia, saneamento, transporte. Também podem destinar recursos, com base em emendas parlamentares municipais, para projetos específicos, como projetos habitacionais, consultorias técnicas que desenvolvem projetos para populações vulneráveis, movimentos sociais que lutam por moradia”, disse. Agência Brasil.
>> Leia a entrevista da especialista Paula Miranda à Agência Brasil
Plano diretor
Um elemento central para a habitação nas cidades é o plano diretor, uma lei que orienta como a cidade deve ser ocupada e ampliada. Por se tratar de uma lei, reflete a importância das câmaras vereadoras, que aprovam o texto.
Paula Miranda, da Uerj, contextualiza que o plano diretor está previsto no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), lei que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelecendo diretrizes gerais para a política urbana. “O Estatuto da Cidade obriga todos os municípios com mais de 20 mil habitantes a criarem um plano diretor, que deve ser renovado a cada dez anos”, explica.
A diretora da Habitat Brasil, Socorro Leite, argumenta que o documento traz regras específicas “para regularizar a situação dessas regiões e garantir espaços para construção de moradias, localizadas em áreas bem estruturadas e com infraestrutura adequada”.
Socorro Leite destaca que os centros urbanos precisam receber atenção especial do plano diretor, “aplicando instrumentos que garantam a função social da propriedade, como a destinação de imóveis abandonados para produção de novas moradias”.
Especulação imobiliária
Outra função dos planos diretores, acrescenta o ativista, é combater a especulação imobiliária, ou seja, a prática de comprar imóveis e terrenos com a expectativa principal de revendê-los com lucro, sem aproveitamento social. “O município não pode ficar à mercê de interesses privados”, sublinha.
Para ela, os planos diretores não podem beneficiar apenas o mercado imobiliário. “O plano tem o poder de estabelecer regras que podem tornar uma área mais ou menos atrativa para o mercado imobiliário, interferindo nessa dinâmica e reservando espaços para habitação social.”
A urbanista Paula Miranda cita a possibilidade de progressividade do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) (com aumento gradual) como uma dessas regras.
“O terreno precisa cumprir uma função social, portanto, caso o município tenha previsto esse instrumento, o poder público pode notificar o proprietário para apresentar projeto de construção no terreno ou de ocupação de prédio ocioso. Caso a obrigação não seja cumprida, poderá ser cobrado IPTU progressivo até o cumprimento”, detalha Paula Miranda.
O professor de arquitetura e urbanismo, porém, lamenta que, às vezes, nem sejam criadas leis específicas para regular e combater a especulação imobiliária.
“Apesar da possibilidade de prever, nos planos diretores, uma série de instrumentos que possam exercer controle, de certa forma, sobre a especulação imobiliária, estes muitas vezes não são aplicados. Às vezes, leis específicas para regulamentação nem sequer são criadas. Em alguns casos, o poder público deixa de agir por desinteresse pelo tema, ou por coordenação com setores privados”, afirma Paula.
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