Em 2024, a Prefeitura de São Paulo abriu mão de R$ 5,2 milhões em repasses do governo do Estado para acolher moradores de rua. Os recursos seriam suficientes para pagar, durante um ano, habitação social para 114 pessoas em uma área administrada por Ricardo Nunes (MDB) que é alvo de críticas do Tribunal de Contas Municipal (TCM) pela baixa qualidade dos serviços prestados. Ao mesmo tempo, em três anos e meio de gestão, 688 dos 1.338 serviços de assistência social da capital foram contratados sem licitação. O volume, praticamente metade de todos os contratos fechados no período, custou ao município R$ 57,8 milhões.
Procurada, a Câmara Municipal admitiu não ter conseguido utilizar a totalidade dos recursos para pagar as diárias contratadas nos hotéis para acolher a população em situação de rua. A história desse financiamento começou em março de 2022, quando o Conselho Estadual de Assistência Social (CONSEAS) aprovou a liberação de R$ 52,2 milhões do Fundo Estadual de Assistência Social (FEAS) para o governo municipal utilizar em hotéis parceiros para abrigo de moradores de rua.
O atraso na execução dos recursos pela Secretaria Municipal de Assistência Social (SMADS), porém, forçou a devolução de parte do valor aos cofres do Tesouro paulista no início deste ano. A partir de março de 2022, a prefeitura teve um ano para utilizar os recursos, podendo ser prorrogado por mais um ano. Durante o tempo em que os recursos da FEAS estiveram à disposição da gestão Nunes, o TCM considerou que as ações para atender essa população não funcionavam de forma satisfatória e exigia melhorias. Em junho do ano passado, a Justiça deu prazo de 60 dias para que a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social apresentasse um plano com propostas de soluções para o problema.
A decisão exigiu, entre outros pontos, a melhoria da infraestrutura das unidades de acolhimento, a transparência dos relatórios de acompanhamento, a prestação de contas dos serviços e a adequação do número de funcionários designados para essas atividades. Findo o prazo, o departamento não deu resposta ao Tribunal, tendo o tribunal emitido um alerta sobre a situação dos sem-abrigo.
Em 2022, quando foi feito o repasse, foram gastos R$ 21 milhões do valor total. O restante, R$ 31,2 milhões, foi reservado para 2023. Porém, esse valor não foi integralmente executado no prazo de 12 meses e restaram R$ 5,2 milhões, que precisaram ser devolvidos aos cofres do Estado. A Prefeitura informou ainda que está em negociação com o governo do Estado para recuperar os recursos que tiveram que ser devolvidos à FEAS.
Os R$ 52 milhões da FEAS foram repassados após o Censo da População em Situação de Rua, realizado em 2021, indicar que quase 32 mil pessoas não tinham onde morar na cidade, o que representa um aumento de 30% dessa população em relação a 2019. Há ainda não há levantamento atualizado da Prefeitura, mas outros estudos apontam que o número cresceu.
Segundo o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em dezembro do ano passado, 64,8 mil pessoas viviam nas ruas da capital. A estimativa é baseada em informações do CadÚnico, sistema do governo federal que armazena dados sobre famílias de baixa renda do país e beneficiárias de programas sociais.
O integrante do CONSEAS, órgão responsável pelo repasse, Edvaldo Gonçalves de Souza afirma que a Prefeitura foi solicitada a prestar esclarecimentos sobre o motivo pelo qual o valor não foi integralmente executado. “Ligamos quatro vezes para a Prefeitura para explicar por que não estavam usando o dinheiro, mas nos deixaram vigiando os navios. Iam devolver R$ 27 milhões, mas avisamos antes. mas não foi possível remarcar pela segunda vez”, relata.
Representante dos sem-abrigo no concelho, diz ainda que os hotéis oferecidos carecem de instalações adequadas. “Há problemas com comida azeda, camas com muquirana, que é o carrapato do pombo, e quartos quebrados. estávamos brincando de assessoria. “Uma inspeção do TCM realizada em novembro do ano passado detectou problemas como mofo, falta de limpeza e acessibilidade.
Contratos sem licitação e a Kite Association
A Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) é uma das mais importantes na gestão municipal e conta com orçamento superior a R$ 1 bilhão anualmente. Parte desses recursos tem sido destinada a contratos sem licitação. De acordo com uma pesquisa realizada pela Estadão, 688 dos 1.338 serviços assistenciais da capital foram contratados sem licitação, o que corresponde a 52% do total. Dentre eles, 31 são termos de colaboração realizados por meio de contratação emergencial.
Diante dessa situação, a Prefeitura informou que os termos representam “2% do total em andamento na Secretaria”. “É importante dizer que as parcerias emergenciais estão previstas na Lei 13.019/2014 e foram realizadas para evitar a interrupção de um serviço essencial em caso de interrupção de sua prestação”. A secretaria não comentou outras modalidades de contratação sem licitação.
Quando há processo licitatório, qualquer empresa pode fazer ofertas, desde que atenda aos requisitos técnicos para participação na concorrência. A licitação tem como objetivo escolher a empresa que oferece o serviço pelo menor preço possível. Já os contratos emergenciais ficam restritos a apenas três empresas concorrentes, convidadas a critério discricionário do gestor público. A dispensa de licitação pode ocorrer por meio de prorrogações contratuais.
“Isso se destaca claramente. A contratação emergencial implica isenção de licitação, que existe para garantir maior economia e evitar direcionamentos e fraudes. O que temos neste caso é, no mínimo, um alerta. Na melhor das hipóteses, estamos lidando com um grave problema de planejamento e, consequentemente, prejuízo aos cofres públicos”, avalia a diretora-executiva da Transparência Brasil, Juliana Sakai.
Esse tipo de procedimento foi criado para situações excepcionais em que os governos não têm tempo de fazer uma licitação sem que o problema se agrave ou cause danos a vidas e bens públicos, como em calamidades. É o caso, por exemplo, do Rio Grande do Sul, onde as fortes chuvas deixaram 90% dos municípios inundados.
Uma das organizações sociais que trabalha para acolher a população em situação de rua e que mais tem se beneficiado desde o ano passado é a Associação Brasileira de Pipas. Embora seu nome faça referência apenas a um brinquedo, a entidade obteve R$ 34,5 milhões em contratos com a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social desde 2023. Atualmente, possui cinco termos de colaboração com a secretaria, sendo dois deles assinados sem licitação. Sua receita mensal com transferências é de R$ 687 mil. O valor, segundo a Prefeitura, diz respeito à administração de dois Centros de Acolhimento de Adultos, um Serviço de Acolhimento Institucional de Crianças e Adolescentes, uma Instituição de Longa Permanência para Idosos e um Serviço de Proteção Social a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência.
Entre o início da gestão de Nunes, em 2020, e 2022, a associação fez negócios apenas com as Secretarias de Educação e de Esporte e Lazer. Juntas, as duas secretarias repassaram R$ 57,7 milhões à organização social. Antes não tinha contratos com a Prefeitura de São Paulo.
O presidente da entidade é Cristiano Concordio do Nascimento, cuja esposa, Thalita Miranda, foi eleita, em 2023, para uma vaga no Conselho Municipal de Assistência Social (COMAS), órgão que fiscaliza organizações sociais que prestam serviços à Secretaria de Assistência e Assistência Social. Desenvolve e participa da distribuição de recursos do departamento. Thalita é consultora sênior do segmento de representantes de usuários, embora seja vinculada à presidente Associação Brasileira de Kites e, em postagens nas redes sociais, divulgue o trabalho do marido.
Em seu site, a Associação Brasileira de Kite diz que faz “trabalhos voltados à orientação e prevenção de acidentes com pipas” por meio de palestras e workshops. Menciona ainda “oficinas de pipas nas escolas, doação de pipas e materiais para sua fabricação e doação de antenas para motociclistas”.
A entidade demonstra, por meio de eventos convocados a pretexto de divulgação de ações sociais, apoio ao prefeito. No dia 4, Nunes foi anunciado como atração principal de um almoço organizado pela associação para lançamento do projeto “Rede Cozinha”. Um banner divulgado nas redes sociais anunciava: “Almoço com o Prefeito Ricardo Nunes”. O ato foi realizado em um endereço na zona leste.
consultado por Estadão, especialistas em direito público relataram que a presença do nome do prefeito em material publicitário feito por entidade contratada pelo poder público poderia violar o princípio da impessoalidade na gestão. “Em tese, sim”, disse o promotor Sílvio Antônio Marques. Para o professor da Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV), Carlos Ari Sundfeld, a situação é “preocupante”, mas, no entanto, seria necessária a comprovação da existência de ordem expressa do prefeito para divulgação de publicidade ou vantagem ilícita obtida pela entidade para discutir improbidade administrativa no caso.
Por fim, a Prefeitura informou em nota que “o acolhimento em hotéis da rede social assistencial tem custo diário de R$ 125”. “Nesses espaços, além do acolhimento, são realizadas atividades socioeducativas que promovem o desenvolvimento de suas potencialidades, aquisições e conquista de autonomia, protagonismo e cidadania. São servidas diariamente refeições para cada anfitrião. hospedados nos serviços da rede socioassistencial obtiveram saída qualificada, deixando de depender da Assistência Social.” Ele relatou ainda que o prefeito não compareceu ao almoço e desconhecia a publicidade feita pela entidade.
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